Justificativas

O consumo de drogas faz parte do nosso cotidiano e a história tem mostrado que a humanidade sempre as utilizou com as mais diversas finalidades: associadas à música, dança, meditações, jejuns, curas medicinais e espirituais, etc. (ARAÚJO, 2012; BUCHER, 1992; GRAEFF, 1984). Ou seja, o ser humano, em todas as culturas, procurou várias formas de transcendência e de manipulação da “consciência” (PACHECO, 2004). Substâncias psicoativas podem ter usos curativos ou prejudiciais, bem como, lícitos ou ilícitos, variando culturalmente tais atribuições de valor, sendo que o consumo dessas substâncias tornou-se um problema a partir da organização dos Estados Modernos (séc. XVI), do crescimento da industrialização (séc. XIX) e da expansão do sistema capitalista de produção econômica (primeira metade do século XX). Esses acontecimentos trouxeram a introdução do comércio, o contrabando e o tráfico de drogas psicoativas (GAMELLA, 1997). E na medida em que se ampliaram as tecnologias de normalização (FOUCAULT, 2005, 2008, 2009), o uso de drogas psicoativas foi “estrategicamente atrelado aos hábitos de determinados grupos populacionais conforme os interesses políticos e econômicos de dominação” (SOUZA, 2013, p.95).

As drogas psicoativas acabaram se tornando um produto de consumo como qualquer outro, ou seja, privilegiou-se a capacidade de produzi-las em larga escala e distribui-las comercialmente de forma regular. Desenvolveram-se drogas mais potentes e puras. Além do mais, atividades de produção e comércio tornaram-se instrumentos de colonização e dominação europeias sobre inúmeros povos. O intuito comercial objetivava elevar o consumo, estabelecendo quais drogas poderiam ser consumidas, promovendo o cultivo de chá, café, tabaco e ópio, bem como a produção de bebida alcoólica destilada.

Segundo Minayo (2003) o mercado de drogas, faz parte de circuitos globais, com redes internacionais de produção e distribuição, além de uma organização complexa, extremamente capilarizada, que atinge todas as camadas sociais, utilizando as mais sofisticadas estratégias de acumulação de riqueza. Em torno dessas atividades de produção houve mudanças importantes na convivência das pessoas com diversos tipos de drogas, com impactos negativos nesse consumo já que passou a ser mediado por uma relação quase que exclusivamente comercial. Não podemos esquecer o que a implementação da industrialização exerceu sobre os corpos humanos: um controle exaustivo do tempo, a quantidade de horas dedicadas ao trabalho, reduzindo os espaços possíveis para uso de substâncias de forma recreativa e independente do uso comercial (GAMELLA, 1997).

No Brasil, década de 1980, o fracasso do “milagre econômico”, a inflação e a explosão demográfica nos grandes centros urbanos, vão gerando um aumento dos chamados “cinturões de pobreza” nas periferias e favelas, contexto que favoreceu a escalada do tráfico de drogas e transformação das favelas e periferias urbanas em lugares estratégicos para o mercado ilícito, recrutando jovens pobres para o tráfico, mercado orientado pelas disputas por pontos de venda entre facções inimigas e o enfrentamento direto com a polícia, dando início a uma verdadeira guerra civil inserida num “ciclo global de guerras”. No entanto, o tráfico de drogas não pode se reduzir à produção da substância, mas deve se estender ao plano de produção de modos de subjetivação consumista, característica que é desconsiderada pelo Estado brasileiro ao focalizar esforços em combater a produção das drogas. Nesse sentido, as estratégias policiais e militares assumem a função de controle das camadas pobres, pois passam a localizar geograficamente um processo de produção transnacional: responsabilizam-se as favelas e os países “periféricos” por um mercado que é movimentado por uma lógica de consumo que é acionada pelos países ditos de “primeiro mundo” (PASSOS; SOUZA, 2011).

A partir da metade do século XX, a expansão do controle e de valores morais disciplinares nas sociedades ocidentais, (o que se costuma chamar de processo de globalização), só ampliou ainda mais o desmonte de antigos rituais comunitários presentes na vida dos indivíduos, acarretando transformações nas suas relações com o tempo e o espaço, regulando atividades como o trabalho e lazer. O estímulo ao consumo ampliou-se de tal modo chegando a formas padronizadas de prazer e a busca de uma felicidade rápida e perene por meio de ações que envolvem materialidades as mais variadas, incitando-nos ao consumo imediato de uma infinidade de produtos. A busca da felicidade completa acabou por excluir a dor e a frustração como partes integrantes da vida, instituindo a “tirania da felicidade” que também é estimulada “pela a crescente cientifização e tecnologização da vida cotidiana que prometem a garantia de uma felicidade plena, sem fraturas” (CERRUTI, s/p, 2002).

Na “onda” dessa busca pelo prazer e diferentes modos de ver a vida o ser humano que, como dissemos, sempre utilizou drogas pontualmente (em rituais ou para recreação), transformou o uso de substâncias psicoativas em foco de consumo do prazer rápido, ao mesmo tempo em que duradouro. O consumo abusivo de substâncias psicoativas tornou-se um problema de saúde pública extremamente relevante em todo o mundo. Especialmente a partir da década de 1940, o ser humano “[...] conseguiu fabricar, a partir de síntese química, compostos particularmente eficazes e seletivos capazes de, por um lado, corrigir distúrbios mentais e de comportamento, e por outros, produzir alterações acentuadas no estado de humor, no senso e percepção e mesmo naquelas funções mais sutis do pensamento” (GRAEFF, p. 11).

Ampliou-se o uso de substâncias psicoativas (uso de medicamentos psicoterapêuticos ou uso de outras drogas psicoestimulantes e alucinógenas). Como apontamos, ocorreram significativas mudanças culturais no uso dessas drogas. Os problemas relacionados ao uso abusivo de drogas não ocorrem somente entre os dependentes adultos que necessitam de tratamento de saúde especializado, mas já se apresentam como problema para adolescentes e crianças com o organismo ainda em formação e que usam diversos tipos de substâncias: inalantes, solventes, bebidas alcóolicas, tabaco, maconha e o crack. Isso desencadeia outros problemas de saúde pública importantes de forma direta ou indireta como, por exemplo, manter relação sexual sem preservativo após cheirar cocaína contraindo doenças como o vírus HÍV (MASUR; CARLINI, 1989). Também, o Ministério da Saúde alertou para um dos problemas importantes que envolvem jovens e que têm se agravado em função do uso abusivo do álcool: os acidentes de trânsito (BRASIL, 2004). Acrescente-se a grave situação da medicalização de pessoas na infância e adolescência, como apontam Scheffler e colegas(2007), em relação ao aumento, nos últimos três, anos de 75% das prescrições de Ritalina (cloridrato de metilfenidato), conhecida como a droga da obediência, para crianças e adolescentes diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Não há ainda estudos conclusivos acerca dos efeitos desse medicamento a longo prazo, mas já há um debate importante entre pesquisadores cujas pesquisas indicam que crianças que recebem o metilfenidato são menos propensos a desenvolver transtornos de abuso de substâncias quando adultos (Ver, p.ex.: ANDERSON et. al., 2002), e, por outro lado, pesquisadores que discutem o uso abusivo desse medicamentos nessa população(Ver, p.ex.: MORTON e STOCKTON, 2000). O Brasil já é o segundo mercado consumidor mundial da Ritalina (MOYSÉS, 2013).

Apontamos ainda que uso de psicoativos entre pessoas de qualquer faixa etária têm consequências sociais que se agravam quando eles, em abstinência, roubam para sustentar seu hábito. Acrescente-se ao rol das dificuldades o fato de que o uso de algumas drogas constituírem-se em ato ilícito, ampliando os problemas sociais com o tráfico, milícias armadas, corrupção, prisão e morte de dezenas de jovens. Portando, vemos aspectos que envolvem o uso de drogas com variadas dimensões que se imbricam: sociais, psicológicas, físicas, farmacológicas, médicas, psiquiátricas, judiciais e antropológicas.

Por fim, não poderíamos deixar de falar dos ansiolíticos (hipnóticos, tranquilizantes, sedativos). Aí se misturam a proposta consumista ás promessas de felicidade de não ter mais qualquer tipo de sofrimento. É a promessa de diminuir as tensões cotidianas apenas tomando um medicamento. Essas são as drogas que mais gozam de popularidade e as mais vendidas no mundo (MASUR e CARLINI, 1989). Seu grande consumo “é proporcional à produção industrial e à publicidade que as sustenta” (BERGERET e LEBRALNC, 1991, p.30). Trata-se de um exemplo importante de que, às vezes, “[...] as drogas que constituem problemas de saúde não são aquelas ilegais, sem uso médico e apenas vendidas pelos traficantes na ilegalidade; ao contrário, às vezes o problema são os produtos lícitos encontrados nas farmácias” (MASUR e CARLINI, 1989, p.64). Acrescentamos, sem nos delongarmos mais, a mesma situação apresentada por uma droga lícita encontrada de forma farta para consumo, que causa sérios problemas sociais e de saúde pública: a bebida alcóolica. Levantamento realizado em 107 cidades brasileiras, em 2001, pelo Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas (CEBRID), apontaram o álcool como a droga mais usada no Brasil. Em estudo recente, realizado na cidade de Fortaleza (CE), Furtado e Méllo (2010) pesquisaram a relação possível entre ingestão de bebida alcóolica e violência doméstica: constatou-se que essa associação é feita de forma direta por todos os profissionais entrevistados seja na Delegacia da Mulher, seja no Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. Sem dúvida, como apontam os autores, não devemos fazer uma relação simplista já que a bebida por si não faz pessoas violentas, mas, bebida alcóolica associada a uma prática de produção de homens que devem a toda hora provar masculidade, tanto pela ingestão de bebida em elevadas quantidades, quanto pela demonstração de força física, produz uma associação perigosa.

Em nosso país temos assistido a fragilidade e ineficácia de ações políticas, seja em níveis federal, estadual ou municipal, priorizando o ataque indiscriminado e frontal ao uso de drogas consideradas ilícitas, ao mesmo tempo em que se faz vista grossa ao uso do álcool. O resultado é que usuários são tratados do mesmo modo que traficantes lotando o sistema carcerário sem qualquer alternativa de tratamento. Ou seja, o manejo do problema nesse momento, contrariando estudiosos de todo o mundo, é cadeia ou Comunidades Terapêuticas (CT), ambas sem o menor preparo para lidar com o problema. As CT’s ainda têm um agravante: vêm recebendo recursos públicos em detrimento da ampliação e melhoria dos serviços ofertados por outros equipamentos e dispositivos que integram a Rede de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, principalmente em prejuízo de investimentos nos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPSad) e nos Consultórios na Rua. Embora previstas na portaria 3088/2011, as CT's vão à contramão da política de redução de danos e política Antimanicomial, já que, de forma geral, se pautam no paradigma da abstinência como “tratamento” prioritário e/ou exclusivo. Relatório do Conselho Federal de Psicologia de 2011, realizado após inspeção em sessenta e oito Comunidades Terapêuticas no Brasil, concluiu que isolam e segregam usuários sem lhes oferecer tratamento de saúde adequado (muitas sequer têm profissionais de saúde em seus quadros funcionais), algumas incorrendo em diversas violências e violações de direitos, terminam por serem espaços religiosos, simulacros de manicômios, na medida em que não trabalham a autonomia do usuário nem prezam pelo convívio com a família e comunidade, dispositivos base da atenção em saúde mental.

Como buscamos expor, as drogas psicoativas nunca estiveram fora do convívio em sociedade, mas sofreram modificações importantes em seus usos com o avanço do sistema capitalista e com o crescimento da chamada “sociedade de risco”. Assim como os “problemas ambientais” e a “criminalidade”, as drogas psicoativas passaram a fazer parte do risco que se supõem ameaçar a vida em sociedade, constituindo por outro lado, nova oportunidade de mercado: “a indústria da segurança cresce solidamente desde há anos, o planeamento das cidades começa a tê-la em conta no seu desenho, gerando zonas de condomínio fechado e levando a cabo operações de renovação urbana em áreas problemáticas” (FERNANDES, 2009, p. 13).

Mesmo estando presente em toda a história da humanidade, o consumo de drogas está sendo vivido como um “mal contemporâneo”. Porém, essa situação só pode ser entendida se levarmos em conta desde a ordem econômica mundial até os modos de relações interpessoais e propostas de vida que buscam hegemonia. Só assim podemos avaliar os fatores que contribuem para o aumento não só de usuários, mas de pessoas que fazem do uso a meta prioritária de suas vidas. O uso de psicoativos não está mais restrito ao discurso contra cultural que teve seu ápice nas décadas de 1960-1970, mas se disseminou por toda sociedade seja como forma recreativa, mas também como tentativa de diminuir sofrimentos (NOGUEIRA, 1999). Precisamos rever os caminhos propostos pelas políticas dedicadas ao uso abusivo de drogas, colaborando com estudos e pesquisas que busquem novas estratégias de enfrentamento. Nenhuma abordagem isolada tem chance de sucesso nesta tarefa. É nessa perspectiva, de ser um trabalho transdisciplinar, que este projeto está sendo renovado.

O problema ético fundamental que deve nos guiar em todo esse trabalho, já foi apontado por Nogueira Filho (2001), e se resume na questão: vamos reduzir as nossas práticas clínicas a neurotransmissores e as pessoas que atendemos a seres “fechados em uma mônada de neurônios”, ou vamos tratar toda a problemática do que se costuma chamar de doença mental “abertos à cultura” ?  É preciso diferenciar as modalidades de relação das pessoas com as drogas. Sabemos que os costumes não são exatamente os mesmos ainda mais quando se trata do uso de drogas psicoativas. Para nós, independente da droga envolvida, importa o sofrimento humano. É uso abusivo, a utilização de drogas para falsear o sofrimento, sejam elas ministradas por indicação médica, sejam as utilizadas por imposição do mercado legal ou ilegal. Drogas usadas para momentos de recreação, não devem se impor em uma relação de dependência, que visa mascarar sofrimentos. Nenhuma droga tem a força mística de impedir angústias seja a ministrada por médicos seja as tentativas leigas de plagiar o ato médico pela automedicação ou uso de drogas psicoativas. Ao mesmo tempo, devem ser repensadas as políticas militaristas que levam a intolerância ao uso recreativo. Ou seja, em nosso campo de estudo, mais e mais apostamos em intervenções pontuais, singulares, que levem em conta as redes sociais envolvida em cada situação.