O
QUE HÁ POR TRÁS DA AÇÃO HIGIENISTA NA "CRACOLÂNDIA"?
Fonte: BLOG DO JOÃO SETTEWHITAKER
May 24, 2017
Terminada a operação de
higiene social na Cracolândia, com todo o autoritarismo e a violência que
caracterizam o Prefeito e o Governador de São Paulo, percebe-se que há algo
mais em jogo do que "apenas" uma operação midiática para supostamente
acabar com o fluxo de drogas que ocorria naquela área.
O fim do Programa De
Braços Abertos, sabe-se, não foi para dar lugar a uma alternativa de política
pública. Nem o prefeito nem ninguém de seu governo está preocupado com o
destino dos dependentes químicos que ali se encontravam. Querem que sumam,
desapareçam, ou talvez morram, como deixa entender a ação de demolição de um
prédio com gente dentro. Sim, com gente dentro. E o Prefeito, revivendo um
caricato Jânio Quadros fora de época, achou por bem associar-se a essa imagem
de desrespeito à vida subindo ele próprio em cima de uma escavadeira. Ao mesmo
tempo, entrou na justiça solicitando o direito de internar compulsoriamente os
dependentes químicos em “casas de recuperação”. Coisas já vistas em um período
muito sombrio da história da humanidade.
Mas há incautos, ou não,
que aplaudem. Acreditam realmente que é assim que se faz o atendimento público
a uma das faces do problema das drogas. Uma das faces, sim, porque para os
abastados o tráfico de drogas entregues a domicílio continua muito bem.
Trata-se aqui do lado trágico da questão: o dos abandonados, dos dependentes
desconectados da sociedade, da vida familiar, dos pobres a quem já não se dava
lugar na nossa sociedade. Esta faceta da questão, que enseja enorme esforço
social, humanitário, de saúde pública, como fazia o De Braços Abertos, é mais
fácil tratar pelo viés do extermínio.
Por sorte ao menos um
Promotor do Ministério Público, da Saúde, encarou esse escândalo e já se
manifestou. Estranho o silêncio de grande parte do MP, se comparado ao esmero
com que fiscalizavam até mesmo a forma de publicação da agenda do prefeito
anterior. Pois bem, vale informar que o que parece vir daqui pra frente na
região deve, ou deveria, dar-lhes bastante material de trabalho.
Pois a “ação antidrogas”
é uma parte só dessa história, como vão revelando os fatos que se seguiram à
bárbara ação policial inicial. No dia seguinte, as máquinas da prefeitura
começaram a demolição de prédios na área da “Cracolândia”. O prefeito publicou
um decreto, dia 19 de maio, declarando a área “de utilidade pública”,
permitindo que imóveis sejam “desapropriados judicialmente ou adquiridos mediante
acordo” para “implantação de equipamento público”. Embora isso não lhe dê
direito de ir destruindo prédios por ai, parece que o Prefeito valeu-se dele
para iniciar um novo processo, não mais de higiene social, mas de intervenção
urbanística mesmo: a demolição do quarteirão inteiro. Vale observar que, para
retirar as pessoas a força, o Prefeito teria que ter a imissão na posse
expedida por algum juiz, dentro de um processo desapropriatório, o que é
impossível ter ocorrido em menos de uma semana. Por sorte, hoje, a valente
Defensoria Pública de São Paulo conseguiu que a justiça suspendesse as
demolições.
Para contornar a lei,
usa-se um velho expediente do autoritarismo: encontrar alguma irregularidade no
imóvel que justifique uma ação de interdição (mesmo se é sabido que na cidade
há shopping centers inteiros em situação irregular, sem sofrer nada do tipo).
As reportagens na grande mídia de ontem, mostrando que bares formais foram
fechados com justificativas pífias como a falta de extintores (clique aqui), evidenciam
o uso desses velhos métodos autoritários para a retomada desse território da
cidade. A construção midiática promovida pelo governo e obviamente assim aceita
pelos jornalões é a de que ali todo mundo é bandido. Então, trabalhadores
honestos que tinham lá seu comércio se viram sob ameaça policial tendo que
tirar em duas horas tudo que tivessem porque as autoridades iam murar o bar.
Afinal, “é tudo bandido”.
Mas o que estaria por
trás dessa nova ação, agora de destruição física de vários quarteirões, a toque
de caixa e sem mesmo retirar as pessoas de dentro? Quais interesses estariam
escondidos pela cortina de fumaça da ação de higienização antidrogas?
O Prefeito de São Paulo
contratou “por notório saber”, isto é, sem processo público de contratação, os
serviços de Jaime Lerner, ex-prefeito de Curitiba, para realizar um projeto
urbanístico para o Centro de São Paulo (clique aqui). Curiosamente, o mesmo
arquiteto havia proposto um pouco antes, em conjunto com o mercado imobiliário,
um projeto para a região, na prática nada mais do que um monte de prédios de
negócios envidraçados por cima de toda a histórica região da luz. Uma típica
ação de gentrificação, e substituição do centro velho por um distrito de
negócios altamente elitizado. Para além das fotos publicadas em seu site e na
época replicadas com entusiasmo pela imprensa, ninguém sabe do que se trata.
Qual o projeto oficial feito para a Prefeitura? Aquele projeto,
sintomaticamente chamado de Nova Luz (não é a primeira vez que se usa esse nome
para projetos do tipo) não é sobre o
quarteirão da Cracolândia, mas começa exatamente ao lado, como se vê na foto
disponibilizada no site do arquiteto (veja aqui). Será que o que ele fez para a
Prefeitura foi ampliado para o quarteirão ao lado, e engloba agora a
Cracolândia? Estaria aí a explicação da ação do Prefeito?
É provável, já que em
janeiro deste ano Dória anunciou oficialmente que estava solicitando ao mesmo
Lerner um projeto específico para a Cracolândia, conforme anunciou à época o
Estadão (leia aqui). Ao mesmo tempo, o Governo e a Prefeitura voltam a falar sobre
a tal da PPP de habitação, que também ocorre na área, um modelo de produção de
moradias que, pela matemática financeira que propõe, não atenderá os mais
pobres. Tampouco aqueles que, sem ser viciados e muito menos traficantes,
moravam e trabalhavam no quadrilátero agora destruído. Para os jovens
estudantes de urbanismo, tá ai uma aula prática do que é gentrificação
promovida pelo Estado. Com qual interesse?
A gestão passada aprovou
instrumentos para promover a requalificação urbanística de áreas da cidade,
como o PIU – Projeto de Intervenção Urbana, que pressupunham processos de
consulta pública e assembleias participativas para aprovação do projeto pelos
moradores. Não se pretendia que as mudanças na cidade fossem isentas da
influência e do poder do capital imobiliário, pois isso não seria, hoje,
possível. Mas se propunha que esses processos fossem discutidos e socialmente
construídos, sujeitos minimamente às
pressões da sociedade e às demandas dos moradores. Projetos, enfim, que partem
do pressuposto do direito de estadia de quem mora no lugar, alavancando as
potencialidades existentes para a recuperação da área com um impacto social
menor, e não projetos de gabinete que propõe a extinção de tudo que exista no
território para a promoção imobiliária pura e simples.
Mas é essa abordagem
elitizada que, infelizmente, parece estar se iniciando na Cracolândia. Um
projeto de cidade que ninguém viu, exceto nas imagens de propaganda divulgadas
na mídia subserviente e acrítica. Quem participou da escolha de Lerner para uma
intervenção tão ambiciosa na cidade? Quem teve acesso ao projeto? Onde foi
discutido? Para quem foi apresentado? Sempre bom lembrar que os serviços de
Lerner, segundo o que se soube na imprensa, foram “generosamente” financiados
pelo setor imobiliário. Trecho de reportagem da Gazeta do Povo dizia o
seguinte: "a contratação de Lerner foi possível por meio de uma parceria
da administração municipal com a iniciativa privada. A contratação será
financiada pelo Sindicato da Habitação (Secovi-SP)". .Acho que não é
preciso dizer mais nada. A “limpeza” da Cracolândia parece ganhar sentido.
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