quinta-feira, 29 de junho de 2017


O DEBATE EM TORNO DO CONCEITO DE "ADICÇÃO":
o que mostramos e o que escondemos?

Em publicação neste mês de junho o editorial do International Journal of Drug Policy (IJDP) faz um destaque importante ao debate mundial sobre as diversas teorizações acadêmicas em torno da “adicção” (termo usado em inglês que no Brasil é importado pelos grupos de ajuda mútua como o AA e NA, ou traduzido como “vício”, ambos sendo usado de forma discriminatória).

No editorial, que tem o título de “The future of ‘addiction’: critique and composition” ― que podemos traduzir livremente por “O futuro da adicção: discordâncias e acordos”― a Revista informa que em março de 2014 a “Nature” publicou uma carta assinada por 94 pesquisadores de várias partes do mundo que se opuseram a um editorial desta mesma revista, que afirmara ter se tornado uma verdade definitiva o “modelo de dependência cerebral da adicção” no debate acadêmico sobre suas origens do uso compulsivo de drogas como se tal origem fosse uma doença cerebral. Os signatários da carta argumentaram que, ao contrário do que havia sido publicado na Nature, o debate não estava resolvido com a adoção da explicação de que uso compulsivo se trata de uma “doença cerebral”, e os pesquisadores afirmaram ainda que tratar esse problema complexo com a explicação usando um único modelo seria “trivializar” o debate com um olhar “míope”.

Ainda segundo o editorial da IJDP, os signatários da carta que contestava a Nature formaram um grupo, “Addiction Theory Network” (“Rede sobre a Teoria da Adicção”), que se dedicou a discutir questões relacionadas ao tema além de planejar eventos onde se criticava o “modelo de doença cerebral”. Nesse debate mundial o que está tomando corpo como consenso importante é que há poucas dúvidas sobre a diversidade deste campo de estudos e que, como dizia a carta dos pesquisadores “o uso da substância não pode ser separado dos seus contextos sociais, psicológicos, culturais, políticos, legais e ambientais: não é simplesmente uma consequência do mau funcionamento do cérebro" (2014, p. 40).

Vemos avançar a cada dia no Brasil, pessoas, muitas delas sem envolvimento com pesquisas e estudos científicos, que permanecem afirmando que o uso compulsivo de drogas se resume a uma “dependência química”, sustentado no padrão de causalidade única, que se enquadra no “modelo de doença cerebral”. Setores da mídia brasileira, (em especial aquela que visa menos informar e mais obter lucros com noticiários alarmantes), continuam a justificar como corretas as ações políticas higienistas de vários governos, a exemplo do que vem ocorrendo na região central da cidade de São Paulo, (que já geraram a morte de um jovem), sob a justificativa de que as pessoas que por lá se encontram nas ruas, são viciados químicos. Já o debate mundial em torno do uso compulsivo de substâncias vai em direção contrária.

A defesa de uma teoria monolítica como a de “vício” advindo da “dependência química”, tendo o cérebro como causa, não está apartada de um embasamento político neoliberal, cujo foco é a produtividade econômica, (comumente camada no Brasil de “crescimento econômico”), que não admite pessoas nas ruas que não estejam sob o controle do Estado ou de Governos. Esse Estado, imbricado com o mercado, que quer controlar a todos nós, fazendo com que alguns continuem a usar o que querem e quando querem, por terem muito dinheiro; enquanto a maioria da população deve viver apenas como “trabalhadores” do capital, com raros momentos de diversão nas poucas praças e parques que ainda subsistem, ou nas lagoas e praias (a maioria poluídas), ou então em espaços privados onde usando as drogas permitas (notadamente álcool, tabaco, açúcar, café e medicamentos).

Há um desprezo pela população empobrecida das periferias que morrem sem cuidado em saúde, já que a rede pública (SUS) está sendo desmantelada em favor de rede privada. População empobrecida que continuam a ser usadas apenas, como mão de obra para que alguns poucos desfrutem da vida, estes com suas casas em lugares privilegiados e com assistência digna em saúde.

Em outras palavras, usa-se a ciência, com argumentos que não são consensuais, para manter a dependência econômica de populações empobrecidas e de pessoas que resistem ao monopólio do Estado no controle de nossas vidas.

O que é fruto de acordo/consenso nos estudos sobre uso compulsivo de drogas?

O editorial do International Journal of Drug Policy (IJDP), se reporta a artigos científicos que advém do “Social Studies of Addiction Concepts” (SSAC) Research Program, originados na universidade australiana de Curtin, apresentados em um Simpósio realizado em Melbourne, Austrália, em 2016. Tais trabalhos debatem o conceito de “dependência”, e sobre o papel que tal conceito desempenha na organização e regulação do que “somos e do que nos tornamos”. Assim, não é possível discutir as teorias sobre “dependência” de drogas, sem adentramos nos modelos de vida que são propostos, ou impostos a todos nós. Esse foco não pode ser escondido em nossas pesquisas conceituais, que devem “fazer perguntas novas sobre o lugar do uso de drogas na sociedade”, diz o editorial da IJDP. E completa: o diagnóstico e o tratamento da adicção são comumente entendidos como o território das políticas e serviços de saúde, mas também são elementos-chave nas configurações legais, onde os conceitos de dependência podem desempenhar um papel importante nos procedimentos judiciais”. Certamente este último coloca o Brasil no centro dessa discussão, pois em nome do uso ilegal de drogas, se mata e se prende especialmente jovens negros empobrecidos, utilizando instrumentos, aparentemente, legais sob o aporte da Justiça.

Concordamos plenamente com o editorial quando nos diz que o objetivo de questionar o uso de conceitos como os de “vício”, dependência, adicção, etc..., não visa a se chegar a um consenso definitivo sobre eles, mas sim: “é dizer que, embora os aspectos individuais do que se chama de adicção possam ser identificados”, e que a experiência das pessoas que sofrem “não sejam negadas”, devemos ter como consenso que o processo de ignorar todas essa singularidades advindas do uso compulsivo de drogas, não pode ser negado sob a justificativa universalizante de que são pessoas doentes, dependente químicas, juntando a todos elas em um conceito  “arbitrariamente político”, “chamado de vício”.

O que deixamos de mostrar quando reduzimos o uso compulsivo de drogas a um problema exclusivamente químico?

Usar o conceito de dependência química deixa de mostrar o que? Em outras palavras, acompanhando o editorial da International Journal of Drug Policy: “[...] para aqueles que trabalham na pesquisa, como podemos realizar estudos sobre "drogas" de forma diferente, [com] quadros explicativos que lancem luz sobre as áreas negligenciadas, para compor novos problemas mais úteis? ”

Continuar dizendo que problemas com drogas é doença cerebral simplesmente esconde a matança que está sendo feito nas periferias das cidades brasileiras. Essa é uma escolha política e econômica. E queremos distância dela.

“Vício” e “dependência” são conceitos estigmatizantes que não ajudam em nada no cuidado em saúde de quem quer que seja. Escondem o sofrimento e a dor singulares de quem usa substâncias para tentar aplacar suas dores ou buscar refúgios possíveis de prazer, que advém de diversas situações, especialmente, da negligência de governos e grupos empresariais mancomunados, que produzem “trabalhadores” a serem explorados e controlados.

NUCED

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