O DEBATE EM TORNO DO CONCEITO DE "ADICÇÃO":
o que mostramos e o que escondemos?
Em publicação neste mês de junho o editorial do International Journal of Drug Policy (IJDP)
faz um destaque importante ao debate mundial sobre as diversas teorizações acadêmicas
em torno da “adicção” (termo usado em inglês que no Brasil é importado pelos
grupos de ajuda mútua como o AA e NA, ou traduzido como “vício”, ambos sendo
usado de forma discriminatória).
No editorial, que tem o título de “The
future of ‘addiction’: critique and composition” ― que podemos traduzir
livremente por “O futuro da adicção: discordâncias e acordos”― a Revista
informa que em março de 2014 a “Nature”
publicou uma carta assinada por 94 pesquisadores de várias partes do mundo que
se opuseram a um editorial desta mesma revista, que afirmara ter se tornado uma
verdade definitiva o “modelo de dependência cerebral da adicção” no debate
acadêmico sobre suas origens do uso compulsivo de drogas como se tal origem fosse
uma doença cerebral. Os signatários da carta argumentaram que, ao contrário do
que havia sido publicado na Nature, o
debate não estava resolvido com a adoção da explicação de que uso compulsivo se
trata de uma “doença cerebral”, e os pesquisadores afirmaram ainda que tratar
esse problema complexo com a explicação usando um único modelo seria “trivializar”
o debate com um olhar “míope”.
Ainda segundo o editorial da IJDP, os signatários da carta que
contestava a Nature formaram um grupo,
“Addiction Theory Network” (“Rede
sobre a Teoria da Adicção”), que se dedicou a discutir questões relacionadas ao
tema além de planejar eventos onde se criticava o “modelo de doença cerebral”. Nesse
debate mundial o que está tomando corpo como consenso importante é que há
poucas dúvidas sobre a diversidade deste campo de estudos e que, como dizia a
carta dos pesquisadores “o uso da substância não pode ser separado dos seus
contextos sociais, psicológicos, culturais, políticos, legais e ambientais: não
é simplesmente uma consequência do mau funcionamento do cérebro" (2014, p.
40).
Vemos avançar a cada dia no Brasil, pessoas, muitas delas sem
envolvimento com pesquisas e estudos científicos, que permanecem afirmando que
o uso compulsivo de drogas se resume a uma “dependência química”, sustentado no
padrão de causalidade única, que se enquadra no “modelo de doença cerebral”. Setores
da mídia brasileira, (em especial aquela que visa menos informar e mais obter
lucros com noticiários alarmantes), continuam a justificar como corretas as ações
políticas higienistas de vários governos, a exemplo do que vem ocorrendo na região
central da cidade de São Paulo, (que
já geraram a morte de um jovem), sob a justificativa de que as pessoas que
por lá se encontram nas ruas, são viciados químicos. Já o debate mundial em
torno do uso compulsivo de substâncias vai em direção contrária.
A defesa de uma teoria monolítica como a de “vício” advindo da “dependência
química”, tendo o cérebro como causa, não está apartada de um embasamento político
neoliberal, cujo foco é a produtividade econômica, (comumente camada no Brasil
de “crescimento econômico”), que não admite pessoas nas ruas que não estejam
sob o controle do Estado ou de Governos. Esse Estado, imbricado com o mercado, que
quer controlar a todos nós, fazendo com que alguns continuem a usar o que
querem e quando querem, por terem muito dinheiro; enquanto a maioria da população
deve viver apenas como “trabalhadores” do capital, com raros momentos de
diversão nas poucas praças e parques que ainda subsistem, ou nas lagoas e
praias (a maioria poluídas), ou então em espaços privados onde usando as drogas
permitas (notadamente álcool, tabaco, açúcar, café e medicamentos).
Há um desprezo pela população empobrecida das periferias que morrem sem
cuidado em saúde, já que a rede pública (SUS) está sendo desmantelada em favor
de rede privada. População empobrecida que continuam a ser usadas apenas, como
mão de obra para que alguns poucos desfrutem da vida, estes com suas casas em
lugares privilegiados e com assistência digna em saúde.
Em outras palavras, usa-se a ciência, com argumentos que não são
consensuais, para manter a dependência econômica de populações empobrecidas e
de pessoas que resistem ao monopólio do Estado no controle de nossas vidas.
O que é fruto de acordo/consenso nos estudos sobre uso compulsivo de
drogas?
O editorial do International
Journal of Drug Policy (IJDP), se reporta a artigos científicos que advém
do “Social Studies of Addiction Concepts”
(SSAC) Research Program, originados
na universidade australiana de Curtin, apresentados em um Simpósio realizado em
Melbourne, Austrália, em 2016. Tais trabalhos debatem o conceito de “dependência”,
e sobre o papel que tal conceito desempenha na organização e regulação do que “somos
e do que nos tornamos”. Assim, não é possível discutir as teorias sobre “dependência”
de drogas, sem adentramos nos modelos de vida que são propostos, ou impostos a
todos nós. Esse foco não pode ser escondido em nossas pesquisas conceituais,
que devem “fazer perguntas novas sobre o lugar do uso de drogas na sociedade”,
diz o editorial da IJDP. E completa: o diagnóstico e o tratamento da adicção são
comumente entendidos como o território das políticas e serviços de saúde, mas
também são elementos-chave nas configurações legais, onde os conceitos de
dependência podem desempenhar um papel importante nos procedimentos judiciais”.
Certamente este último coloca o Brasil no centro dessa discussão, pois em nome
do uso ilegal de drogas, se mata e se prende especialmente jovens negros
empobrecidos, utilizando instrumentos, aparentemente, legais sob o aporte da
Justiça.
Concordamos plenamente com o editorial quando nos diz que o objetivo de
questionar o uso de conceitos como os de “vício”, dependência, adicção, etc...,
não visa a se chegar a um consenso definitivo sobre eles, mas sim: “é dizer
que, embora os aspectos individuais do que se chama de adicção possam ser identificados”,
e que a experiência das pessoas que sofrem “não sejam negadas”, devemos ter
como consenso que o processo de ignorar todas essa singularidades advindas do uso
compulsivo de drogas, não pode ser negado sob a justificativa universalizante
de que são pessoas doentes, dependente químicas, juntando a todos elas em um
conceito “arbitrariamente político”, “chamado
de vício”.
O que deixamos de mostrar quando reduzimos o uso compulsivo de drogas a
um problema exclusivamente químico?
Usar o conceito de dependência química deixa de mostrar o que? Em outras
palavras, acompanhando o editorial da International
Journal of Drug Policy: “[...] para aqueles que trabalham na pesquisa, como
podemos realizar estudos sobre "drogas" de forma diferente, [com]
quadros explicativos que lancem luz sobre as áreas negligenciadas, para compor
novos problemas mais úteis? ”
Continuar dizendo que problemas com drogas é doença cerebral
simplesmente esconde a matança que está sendo feito nas periferias das cidades
brasileiras. Essa é uma escolha política e econômica. E queremos distância dela.
“Vício” e “dependência” são conceitos estigmatizantes que não ajudam em
nada no cuidado em saúde de quem quer que seja. Escondem o sofrimento e a dor
singulares de quem usa substâncias para tentar aplacar suas dores ou buscar
refúgios possíveis de prazer, que advém de diversas situações, especialmente,
da negligência de governos e grupos empresariais mancomunados, que produzem “trabalhadores”
a serem explorados e controlados.
NUCED
Belo texto!
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