POLÍTICA E AMIZADE
EM TEMPOS SOMBRIOS
(GIORGIO AGAMBEN)
Transcrição
A.R.
Tradução
Peter Pál Pelbart
Em que
ponto estamos?
Tal é a
questão que nos cabe colocar hoje. Pois parece-me que não tomamos
suficientemente consciência da mudança radical em curso, de ordem política,
jurídica e cultural.
Digo
isto pois muita gente, para não confessar sua impotência, finge continuar podendo
agir no interior de normas que já não existem mais. Somos confrontados,
desesperadamente, ao desmoronamento de um mundo. Mas não como o gostariam
aqueles que pretendem governá-lo conforme seu interesse, e sim pela passagem a
um mundo mais conforme às novas exigências da sociedade. O que está chegando ao
seu fim agora é a era das democracias burguesas, com seus direitos,
constituições, parlamentos. Para além do aspecto jurídico – não negligenciável,
é claro – o que acaba é o conjunto de pressupostos substanciais deste mundo.
Que aliás começaram a colapsar com a ideia de uma terceira guerra mundial e com
os totalitarismos tirânicos e democráticos.
Apenas
para tentar medir a amplitude dessa mudança. Hoje, no país em que vivo, as leis
em vigor relativas aos que se chama de “no-vax” [contrários à obrigatoriedade
da vacina) são dez vezes mais repressivas que as leis fascistas de 1938. Também
lembro que no momento de sua instalação na Itália, o fascismo deixou
relativamente poucas vítimas, ao passo que as políticas instauradas
inescrupulosamente pelos nossos governantes causaram a morte de milhares de
pessoas. O operador que tornou possível essa intervenção foi, como é evidente,
a longa indiferença entre o direito e a política, que equivale ao estado de urgência.
Há quase
vinte anos, em um livro onde tentava fornecer uma teoria do estado de exceção,
eu constatava que o estado de exceção estava se tornando o sistema normal de
governança.
Como
vocês sabem, o estado de exceção é um estado de suspensão da lei; por
conseguinte, um estado “sem lei”, porém incluído na ordem jurídica. Do ponto de
vista técnico, foi definida uma separação entre a força da lei e a lei. Com o
estado de exceção, de um lado a lei está teoricamente em vigor, mas ela não tem
força, ela não se aplica, ela é suspensa; e de outro lado, disposições e
medidas que não têm valor de lei, adquirem força de lei. Poderíamos dizer, no
limite, que o que está em jogo no estado de exceção é uma força de lei
flutuante, sem a lei.
Seja
como se defina esta situação, que se considere o estado de exceção como
anterior à ordem jurídica ou ao contrário, exterior a esta ordem, o que temos é
uma espécie de eclipse da lei no sentido em que se a conhecia antes, e na qual
– como num eclipse astronômico – a lei subsiste mas não irradia sua luz. O
paradigma da lei é substituído pelo das cláusulas e das fórmulas vagas tais
como estado de necessidade, segurança, ordem ou saúde pública, que sendo
indeterminados, precisam que alguém intervenha para os determinar. Já não
lidamos com uma lei ou constituição, mas com uma força de lei flutuante que
pode ser assumida, como o vemos hoje, por comissões, indivíduos, médicos,
especialistas totalmente estrangeiros à ordem jurídica.
Creio
que nos encontramos aqui diante de algo da ordem do que Ernst Fränkel, num
livro de 1941 em que tentava explicar a estrutura do Estado nazista, tinha
nomeado “Estado dual”. O “Estado dual” é um Estado normativo, um Estado fundado
na lei, ao qual se junta um “Estado discricionário”, um Estado das medidas de
urgência, através das quais se exerce o governo dos homens e das coisas. Uma
frase de Fränkel em seu livro é significativa: “Para sua salvação, o
capitalismo alemão precisava não de um Estado unitário, mas de um Estado duplo,
“arbitrário” na dimensão política e “racional” na dimensão econômica”.
É na
descendência desse “Estado dual” que devemos situar o fenômeno cuja importância
não poderia ser subestimada, e que diz respeito a uma verdadeira mudança na
figura mesma do Estado. Refiro-me ao que os politólogos americanos chamam de
“Estado administrativo” e que encontrou num livro recente sua teorização.
Trata-se de um modelo de Estado no qual o exercício do governo extrapola a
divisão tradicional entre os poderes constitucionais, legislativos, executivos
e judiciários. E agencias não previstas na constituição exercem, em nome da
administração e de maneira discricionária, funções e poderes que eram
atribuição dos três sujeitos constitucionais competentes.
Trata-se
de uma espécie de Leviatã administrativo. Um Leviatã puramente administrativo
que supostamente age no interesse da coletividade, mesmo transgredindo o que
está prescrito na Constituição, com o objetivo de assegurar e guiar não a livre
escolha dos cidadãos, mas o que os teóricos chamam de navegabilidade, isto é,
na realidade, a governabilidade segundo sua escolha.
Parece-me
que é o que acontece hoje, quando vemos os poderes decisórios exercidos – ao
menos é o caso da Itália – por comissões, sujeitos, médicos, especialistas e
economistas totalmente exteriores aos poderes constituídos.
Através
desses procedimentos factuais, a constituição é alterada de modo muito mais
substancial do que quando isso ocorre através dos poderes de revisão previstos
pelos textos da constituição, até ela se tornar, como o dizia outrora um
discípulo de Marx, “um pedaço de papel”,. É bem significativo que tais
transformações, através desse modelo que tentei mostrar, obedecem à estrutura
dual do governo nazista. Talvez este seja agora o conceito mesmo de governo –
de uma política “cibernética” do governo – que hoje cabe colocar em xeque.
Disseram
que o Estado moderno vive de pressupostos que ele não é capaz de garantir. É
possível que a situação que tentei descrever seja a forma pela qual essa
ausência de garantias atinge sua massa crítica e o Estado moderno renuncia ao
que era evidente, a saber, a sua capacidade de garantir seus pressupostos. Esta
história chegou ao seu fim – e é este fim que estamos vivendo agora.
Creio
que toda a discussão sobre o que podemos e devemos fazer deve partir hoje dessa
constatação, de que a civilização na qual vivemos colapsou - uma sociedade
baseada na finança doravante fez bancarrota. Que nossa cultura tenha estado na
borda de uma bancarrota geral era evidente há décadas e os espíritos mais
lúcidos do século XX o diagnosticaram sem reserva.
Não
consigo esquecer que quando eu era bem mais jovem, Pier Paolo Pasolini e Elsa
Morante, que eu frequentava nos anos 60, denunciavam a inumanidade e a barbárie
que eles viam crescer em torno deles. Vistos de hoje, aqueles tempos nos
parecem muito melhores que o nosso. Em todo caso, foi-nos reservada hoje a
experiência nada agradável, porém mais verdadeira que a precedente, de não mais
nos encontrarmos na margem, porém mergulhados nessa bancarrota, intelectual,
ética, religiosa, jurídica, política, econômica, na forma extrema que ela
tomou, e que é exatamente isto: o estado de exceção no lugar da lei, a
informação no lugar da verdade, a saúde no lugar da salvação, a medicina no
lugar da religião, a técnica no lugar da política.
Certamente,
pode-se dizer que uma sociedade em bancarrota já não está viva. Pode ocorrer
que as potências às quais somos confrontados hoje estejam espiritualmente mortas,
mas combater um adversário morto não é mais fácil do que combater um adversário
vivo. Ao contrário, pode ser uma tarefa mais difícil.
Os seres
humanos não podem viver sem atribuir a suas vidas razões e justificativas, tais
como o fizeram ao longo do tempo, através da religião, dos mitos, crenças
políticas, filosofias ou teorias de todo gênero. Tais justificativas, ao menos
na parcela da humanidade mais rica e tecnológica, hoje parecem ter despencado.
Pela primeira vez, talvez, os homens se encontrem reduzidos à sua pura
sobrevivência biológica, que eles parecem incapazes de aceitar.
Só isso
pode explicar por que, em vez de assumir o simples fato de viver uns ao lado
dos outros, escolheu-se instaurar um implacável terror sanitário, no qual a
vida, sem justificativa ideal, é punida a cada instante por uma doença e pela
morte.
O que fazer
numa tal situação?
No plano
individual, é claro, é preciso continuar na medida do possível a fazer bem o
que buscou-se fazer bem antes, mesmo se já não parece haver motivo algum para o
fazer. Talvez justamente porque não há mais motivo, é preciso continuar.
Contudo,
não penso que isso seja suficiente.
Em um
texto que não podemos deixar de sentir próximo de nós, já que se intitula
Homens em tempos sombrios, Hanna Arendt se perguntava: “Em que medida
continuamos comprometidos com o mundo e com a esfera pública, mesmo quando dela
fomos expulsos?
É o que
aconteceu com os judeus: “ tivemos que nos retirar”, diziam aqueles que tinham
escolhido o que na Alemanha da época era designado com a expressão paradoxal de
“imigração interna”. Nós nos encontramos nesse estado, expulsos ou condenados a
uma imigração interna.
Nesse
texto Arendt indicava “a amizade” como o possível fundamento para uma política
em tempos sombrios. Creio que a indicação é justa. Com a condição de lembrar
que a amizade, isto é, o experimentar uma alteridade no fato mesmo de existir,
seja considerada como uma espécie de mínimo político. Um limiar que ao mesmo
tempo une e separa o indivíduo e a comunidade. Ou seja, contanto que nos
lembremos que se trata nada menos do que tentar constituir por toda parte uma
comunidade na sociedade. É preciso tentar criar comunidades no interior da
sociedade. Ou seja, face à despolitização crescente dos indivíduos, reencontrar
na amizade os princípios radicais de uma politização renovada.
Digo isto
sem renunciar à lucidez nem à esperança.
Se as
potências que governam o mundo decidiram recorrer a medidas e dispositivos tão
extremos quanto a biossegurança e o terror sanitário é porque temiam não ter
outra alternativa para sobreviver. Se as pessoas aceitaram essas medidas é
porque elas também sabiam, num certo sentido, que o mundo em que tinham vivido
até então não podia continuar.
Não
lamentamos que este mundo tenha acabado. Não temos nostalgia alguma pela ideia
do humano e do divino que as ondas implacáveis do tempo apagam como um rosto de
areia nas margens da História. Mas de maneira igualmente decidida, recusamos a
vida nua, muda e sem rosto e a religião da saúde que o governo nos propõe.
Texto lido pelo autor no dia 30 de junho
de 2022, na “Comissão Du.Pre”, e disponível em https://youtu.be/vGVun3fmgWo
Diante do agravamento da situação no
mundo e da escalada totalitária, o coletivo internacional L´indomabile e a
comissão italiana Du.Pre organizaram um encontro em Paris no dia 29 de janeiro
de 2022, com várias personalidades e coletivos da Itália e da França. A ideia
era criar uma Assembleia internacional dos povos.
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